Diante da situação de calamidade pública no Rio Grande do Sul, a Defensoria Pública da União (DPU) manifesta preocupação sobre relatos de trabalhadores atingidos pelas enchentes que estão sendo ameaçados de demissão ou descontos salariais, caso não retornem ao trabalho. Em nota pública, a Defensoria Regional de Direitos Humanos no estado (DRDH/RS/DPU) explica os direitos dos trabalhadores nesse contexto de desastre climático e destaca as irregularidades cometidas pelos empregadores.
A DPU aponta que as relações econômicas e trabalhistas devem ser pautadas pela função social da empresa, conforme o artigo 170 da Constituição Federal (CF) de 1988, que prevê a redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego. A instituição repudia as violações de direitos dos trabalhadores e está disponível para prestar orientação jurídica e atuar judicial ou extrajudicialmente, se necessário.
A nota, assinada pelo defensor público federal Daniel Mourgues Cogoy, salienta que é direito do trabalhador o abono das faltas nesse período. Essa medida “está intimamente relacionada ao cumprimento da função social da empresa, sendo as faltas justificadas por motivo de conhecimento público e força maior, não podendo as pessoas trabalhadoras serem punidas com advertência, suspensão ou dispensa por justa causa devido à ausência ou atraso em decorrência do estado de calamidade”.
Caso sejam feitos descontos nesse contexto, o ato pode ser enquadrado “como retenção dolosa do salário”, conduta prevista como crime no artigo 7, inciso X, da CF/88, mas que, até o momento, não foi consolidada na legislação penal. A Defensoria explica que “não existe limite máximo ou mínimo de dias previsto na lei para ausência ao trabalho por conta das condições climáticas, considerando que se trata de uma situação de força maior que pode durar dias, semanas, ou até meses – como aconteceu durante a pandemia de Covid-19”.
O texto lembra que as enchentes sem precedentes no Rio Grande do Sul já afetaram 449 municípios, impactando diretamente mais de 2,1 milhões de pessoas em todo o estado, desalojando cerca de 530 mil pessoas, das quais mais de 76 mil permanecem em abrigos. Houve 806 feridos, 108 desaparecidos e 149 mortes confirmadas.
Normas
Caso o local de trabalho encontre-se impossibilitado de funcionar por conta da enchente, deve ser aplicado o artigo 131, VI, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que prevê o abono de faltas nos dias em que não houver serviço, não podendo ser o trabalhador descontado em seu salário ou demitido.
Mesmo que a empresa esteja funcionando, o empregador não pode impor o retorno ao trabalho aos atingidos, pois isso contraria a Constituição Federal, que é fundada na preservação da dignidade humana. De acordo com a DPU, essa imposição “se qualifica como ato ilícito, previsto no artigo 187 do Código Civil e no artigo 9º da CLT”.
A CLT prevê ainda, no artigo 501, que, por força maior, é possível que ocorram acomodações nas relações trabalhistas, referindo-se a “todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.”
Garantias
A DPU lembra que a Defesa Civil dos municípios afetados tem disponibilizado atestados para os atingidos, o que facilita a segurança jurídica dos trabalhadores. A Defensoria aponta, ainda, que é oportuno que o empregador seja avisado sobre a ausência ao trabalho. As empresas, no entanto, não podem exigir a apresentação desse documento.
“A exigência desse atestado por empresas deve ser vista como ato violador aos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, violando a dignidade da pessoa humana, impossibilitando a erradicação da pobreza, sendo a catástrofe climática fato público e notório”, salienta a nota.
Do ponto de vista das empresas, a Lei 14.437/2022 possibilita outros meios para manutenção do vínculo trabalhista com os empregados, mesmo em momentos de calamidade pública, como a adoção do regime de teletrabalho (home office ou trabalho remoto); antecipação de férias individuais; concessão de férias coletivas; aproveitamento e antecipação de feriados; regime diferenciado de banco de horas; e suspensão da exigência dos recolhimentos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
Essas regras devem ser adotadas em até 90 dias, prorrogáveis enquanto durar o estado de calamidade pública.