Arigós, pássaros migratórios, foi o apelido dado aos soldados da borracha que nos anos da segunda grande guerra chegaram aos bandos em terras amazônicas. Não foram os primeiros, como eles, desde o final do século XIX, milhares de nordestinos migraram do sertão para floresta iludidos pela fortuna prometida advinda de uma árvore – Heveas Brasiliensis – a seringueira.
Para contar essa e outras histórias, a Cia Mundu Rodá estreia Arigós – bandeira, espinha-de-peixe, cara-de-gato. A temporada acontece no Centro Cultural São Paulo, na Sala Ademar Guerra (porão), de 19 de janeiro a 12 de fevereiro de 2023, de quinta a sábado, às 21h, e domingo, às 20h, grátis.
Inspirados nos textos amazônicos de Euclides da Cunha e nas histórias e depoimentos de homens e mulheres ribeirinhos, descendentes dos arigós e que hoje são também povos da floresta, a Mundu Rodá adentra o universo amazônico no rasto da borracha. Em “migração criativa”, que reflete o próprio trajeto realizado por esses migrantes, o espetáculo é para nós um deslocamento do universo cultural nordestino, com que temos trabalhado a mais de 20 anos, rumo à Amazônia ainda desconhecida e imaginada.
Além disso, uma série de atividades paralelas estão programadas para complementar a temporada de Arigós. Entre elas está uma exposição no corredor de acesso para a Sala Ademar Guerra, com fotos e vídeos da pesquisa e uma série de conversas com convidados(as), para contextualizar tudo que acontece lá.
Em 1904, Euclides da Cunha fez uma expedição de reconhecimento de territórios amazônicos. Sobre a viagem, ele escreveu textos esparsos, onde sobressai o tom de denúncia social das condições de vida dos migrantes nordestinos nos seringais. Seus artigos e ensaios foram publicados essencialmente em “À margem da História”, cuja primeira edição é de 1909, e também em “Contrastes e Confrontos”, de 1907. Esses textos, e outros não publicados, foram reunidos em “Um Paraíso Perdido”. Boa parte desses textos estarão na encenação do Mundu Rodá.
Adentrando a Mata
A dramaturgia começou a ser construída em 2017, a partir de uma expedição aos rios Iriri e Xingu, no Sudoeste do Pará. O rio Iriri é maior do município de Altamira, que vai desde sua nascente no sul do município, na serra do Cachimbo, até onde deságua na margem esquerda do rio Xingu, possui novecentos quilômetros de extensão e sua largura chega a dois quilômetros.
Embora muitos exploradores e viajantes tivessem adentrado o território, então chamado de deserto demográfico, a despeito dos diversos povos originários que o habitavam, a exploração da borracha foi a primeira grande ferida aberta na Amazônia, construiu cidades e a riquezas de alguns, significou conflito, morte e miséria para tantos outros, esquecidos e apagados pela História.
Euclides da Cunha deixou textos (não finalizados) sobre a floresta amazônica. Em seguida de “Os Sertões” – romance épico sobre o sertão nordestino – seria seu “segundo livro vingador”, uma espécie de vingança do caboclo contra a exploração extrativista da mata. E nesses textos (publicados em “Paraíso Perdido”) é baseada Arigós.
A dramaturgia foi escrita a muitas mãos – quem assina o texto final é Murilo de Paula, sob direção de Antonio Salvador. No elenco estão Juliana Pardo, Alício Amaral, musicista e músico em cena Amanda Martins e Henrique Menezes, além de convidades.
O espetáculo combina atuação com muita presença musical e dança, característica da Mundu Rodá, além de exibir por meio de projeções material de arquivo registrado durante a fase de pesquisa.
Com músicas originais criadas especialmente para o espetáculo, além de trazer canções dos próprios seringueiros. Os ritmos apresentados trazem as influências das regiões amazônicas, que vão desde a rambla à guitarrada, entre outros. Em cena, os próprios atores tocam os instrumentos, que vão desde guitarras, rabecas, flautas, percussão, até os instrumentos locais como espantacão e berrador. A direção e criação musical é de Alício Amaral.
Estrutura
Arigós é dividida em três partes, movimentos que situam o público no ciclo da borracha. A ideia da dramaturgia é confrontar textos de Euclides da Cunha – que trazem uma visão heróica e romântica da Floresta Amazônica, quase estrangeira – com os relatos atuais, de pessoas que habitam e vivem dela nos dias de hoje.
No primeiro movimento “Bandeira” há uma contextualização do que foram os ciclos da borracha, períodos de grande migração para a região amazônica, levando populações de várias regiões do país para explorar a Floresta.
No segundo movimento”Espinha-de-peixe”, eles encenam pela primeira vez o texto “Judas Ahsverus”, de Euclides da Cunha (que faz parte do livro “À Margem do Rio”, lançado em 1975). A obra é falada quase na íntegra, provocando o choque entre o erudito e a interpretação não convencional.
O terceiro movimento “Cara-de-gato” mostra ao público, através de visões mais desconstruídas, vozes múltiplas de pessoas que habitam à margem do Rio Iriri. Nesta parte, a encenação faz uma espécie de “vingança da Hileia” (nome pelo qual também é conhecida a floresta amazônica), querida por Euclides da Cunha em seus escritos. Porém, em Arigós, a ideia é dar voz e trazer à luz as vivências dos povos ribeirinhos, sem idealizações e com suas próprias culturas.
O espetáculo Arigós integra o projeto “Hileia: Manifesto das Margens e outros Gritos”, contemplado pela 36a edição do Edital Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo.
Sobre a Mundu Rodá
A Mundu Rodá (Brasil – São Paulo) como o próprio nome diz, nasceu da inquietude de experienciar outras visões de mundo, divergentes daquelas que nos são oficialmente impostas. Nestes anos de giros pelos Brasis afora, aprendemos com nossos mestres e mestras que o aprendizado e a criação artística não são instâncias isoladas. Ali, as manifestações cênicas tradicionais, as festas e os ritos são manifestações estéticas, religiosas, sociais e políticas, porque refletem o modo como a comunidade entende as relações de convivência de seus indivíduos em várias esferas da vida. Do mesmo modo, buscamos este caminho na criação e na pedagogia da cena que desenvolvemos, onde vida e arte ecoam juntas para expressar as possíveis e diferentes visões de mundo.
A Cia. Mundu Rodá foi fundada em 2000 pelos artistas Juliana Pardo e Alício Amaral, e possui um trabalho continuado de pesquisa que, desde seu surgimento, tem contribuído para um movimento das artes brasileiras contemporâneas que se pensam para além dos padrões eurocêntricos de criação e modos de produção. Vem construindo uma linguagem cênica própria a partir da observação, inter-relação e prática com as Danças Dramáticas Brasileiras e o Trabalho de Artistas Intérpretes, nas áreas do Teatro, Dança e Música.
A partir de pesquisas de campo e intercâmbios com artistas de diferentes áreas, trabalhamos na criação de uma metodologia de preparação e encenação de artista intérprete que dialoga com as urgências e formas de nossa própria época e com os saberes ancestrais que constituem nossas fontes ativas. As corporeidades e musicalidades que constituem as Danças Dramáticas Brasileiras, assim como o estudo biomecânico do corpo-brincador, permeiam nossos trabalhos artístico-pedagógicos.
Ficha Técnica
Concepção e atuação: Alício Amaral e Juliana Pardo
Direção: Antonio Salvador
Musicista e Músico em cena: Amanda Martins e Henrique Menezes.
Contrarregragem em cena: Rodrigo Reis.
Textos: Murilo de Paula e Euclides da Cunha (excertos da obra A Margem da História).
Coordenação Dramatúrgica: Luís Alberto de Abreu e Maria Thaís
Pesquisa dramatúrgica: Cia. Mundu Rodá, Luís Alberto de Abreu, Maria Thaís, Murilo de Paula e Antonio Salvador
Direção e Criação Musical: Alício Amaral
Desenho de Luz Eduardo Albergaria
Operação de Luz: Eduardo Albergaria e Felipe Stucchi
Cenário: Eliseu Weide e Wanderley Wagner da Silva.
Figurino: Emília Reily e Eliseu Weide
Pesquisa Cenário e Figurino: Cia. Mundu Rodá, Antonio Salvador e Eliseu Weide
Serviço
Arigós – bandeira, espinha-de-peixe, cara-de-gato
Cia Mundu Rodá
Temporada: de 19 de janeiro a 22 de fevereiro de 2023, quinta a sábado às 21h, e domingo, às 20h.
Local: Centro Cultural São Paulo – Sala Ademar Guerra – Porão (Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso – São Paulo)
Ingressos: Gratuitos – Retirada de ingressos na bilheteria, 1h antes da sessão
Duração: 80 minutos Recomendação: 12 anos Lotação: 80 lugares
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