“Com atenção e sensibilidade, o grupo de teatro negro percebe que não se trata de um caso particular orquestrado por uma monstruosa família saudosista da escravidão, mas um tipo de constante da sociabilidade brasileira, a última nação do mundo ocidental a abolir a escravidão, o território que mais recebeu escravizados no planeta e também a sede do maior movimento organizado nazista fora da Alemanha, o integralismo. Crítico Paulo Bio Toledo – Folha de S.Paulo *****
Uma das mais importantes montagens surgidas durante a pandemia, premiada pela APCA como melhor espetáculo online de 2021, “Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar”, do coletivo de teatro negro O Bonde, faz temporada no Sesc Avenida Paulista, entre 5 e 15 de janeiro de 2023. Os ingressos custam de R$ 9,00 a R$ 30,00 e podem ser comprados na bilheteria ou pelo site do Sesc a partir de 22 de novembro.
“Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar” tem direção de Roberta Estrela D’Alva e dramaturgia de Lucas Moura, baseada no texto original “Como criar um corpo negro sem órgãos”. São variados os ineditismos desta montagem. É a primeira direção da Roberta fora do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos – coletivo que criou uma linguagem própria, o teatro hip-hop – e, com este espetáculo, O Bonde inicia sua trajetória no teatro adulto, visto que foi com um prestigiado infantil-preto, “Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus”, de Maria SHu e direção de Ícaro Rodrigues que a companhia foi (re)conhecida em sua trajetória.
Em cena, a história das personagens 12, 13, 23 e 40, quatro pessoas pretas salvas da guerra por um padre branco quando crianças. Desde então, vivem na fazenda deste Padre, cuidando das tarefas diárias, supervisionadas por Zero, figura enigmática, central e onipresente, mas sempre ausente. O Padre nunca sai da capela, a guerra nunca atingiu a Fazenda e quando os porquês são questionados, o sino toca e então é hora da oração ou do trabalho. Até que um estranho vulto chega à Fazenda e muda os ventos, o mudo silêncio é quebrado e de dentro da capela o segredo é revelado.
“A poética do ‘spoken word’ —forma de fala recitativa, próxima ao canto do rap, com rítmica cortante e lirismo de temas periféricos— organiza todo o espetáculo e propõe ainda uma atitude coletiva, de olhos acesos e compreensão guerreira da barbárie. Os quatro em cena são múltiplas vozes que formam uma, uma voz que ecoa várias. (…)
Também as variações inusitadas da métrica do texto, a orquestração espetacular da recitação e os muitos efeitos formidáveis da filmagem (a cargo de Matheus Brant e Gabriela Miranda) instauram uma atmosfera fascinante que contribui, contudo, para certo apaziguamento estético do grito de dor e de raiva.”
(crítico Paulo Bio Toledo sobre a peça-filme Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar – Folha de S.Paulo *****)
Spoken word, a poesia falada
Literalmente “palavra-falada”, ou conceitualmente “poesia falada”, spoken word é o nome dado a uma forma de performance na qual as pessoas recitam textos no contexto da música, literatura, artes plásticas ou cênicas. Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar lança mão dessa linguagem em uma pesquisa em que a palavra tem papel fundamental: pulsa com os atores evocando uma “fala percussiva” que traz à cena uma batida constante, compassada, um ritmo musical aos diálogos e à narrativa. Em cena estão os atores Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves – além das vozes das convidadas Grace Passô e Negra Rosa.
Quem faz direção musical é a atriz, compositora e DJ Dani Nega, parceria artística de longa data de Roberta Estrela D’Alva, com quem divide a apresentação de Slams – batalhas de poesia falada que viraram febre em todo Brasil nos últimos anos. Juntamente com o DJ Eugênio Lima, Roberta e Dani Nega receberam em 2020 o Prêmio Shell de Melhor Música pelo espetáculo Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias.
Camadas
Enquanto peça-filme Desfazenda trazia elementos do teatro e do cinema e referências ao tempo pandêmico no qual foi criada, a versão presencial de Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar traz muitas camadas que falam do nosso agora e utiliza recortes de memória por meio de referências a episódios recentes, como o assassinato de George Floyd, do segurança João Alberto no supermercado Carrefour, o colapso da saúde em Manaus. Entretanto, ela é atemporal, não é datada.
“A reiteração do termo branco ocorre em diferentes falas e diálogos na peça-filme, dando um ritmo e intenção incisiva à mensagem do texto, que é falado pelas personagens na maior parte do tempo no formato spoken word (recitação acompanhada por uma base musical). Ao “darem o texto” nesse formato, utilizando microfones apoiados em tripés e olhando para frente mesmo quando duas ou mais personagens estão conversando entre si, os atores atuam flertando com as performatividades adotadas em batalhas de rimas no contexto da cultura hip-hop e das competições de recitação de poesia chamadas slams. Bem como nesses espaços, em Desfazenda o microfone é o aparato que se impõe para ampliar vozes individual e coletivamente durante reflexões sobre liberdade e aprisionamento nas fazendas e casas brancas do passado e do presente.” Trecho de crítica de Mariana Queen Nwabasili (Teatrojornal)
Potencializações
O coletivo O Bonde começou em 2017 com uma relação muito íntima com a palavra, com os griôs, que na tradição africana, são os guardiões da memória, da história, dos mitos e dos costumes que seus povos transmitem oralmente. Nada mais natural que trazer a palavra à frente da cena no primeiro trabalho adulto do grupo. E foi esta experiência que fez com que O Bonde fizesse o convite para que Roberta assumisse a direção do espetáculo. A atriz, MC, pesquisadora, diretora e roteirista foi quem trouxe, junto com o coletivo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, o Slam, movimento de batalhas de poesia falada, para o Brasil, em 2008. O foco está em captar a vibração da poesia falada e alçar a palavra ao protagonismo. Trazer para a cena o microfone e o pedestal como elementos que contribuem para a criação de um efeito de distanciamento épico e não como mais um equipamento utilitário, mas sim um ponto de força para explicitar ainda mais a importância da palavra.
50 meninos negros: da tese de doutorado ao filme e à peça
Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar é livremente inspirado em uma história real, descrita no documentário “Menino 23 – Infâncias perdidas no Brasil”, de Belisario Franca, que parte da descoberta de tijolos marcados com suásticas nazistas em uma fazenda no interior de São Paulo.
Este assunto foi tratado pelo pesquisador Sidney Aguilar em sua tese de doutorado “Educação, autoritarismo e eugenia = exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”. No texto, o historiador relata sobre os 50 meninos negros levados de um orfanato no Rio de Janeiro para uma fazenda – aquela onde os tijolos foram encontrados – e submetidos a trabalhos forçados, isolamento social e castigos físicos por três irmãos que faziam parte da Ação Integralista Brasileira, partido de extrema direita de ideário fascista e nazista.
Para escrever Desfazenda, Lucas Moura utilizou diversas influências, além do documentário “Menino 23” como a ideia de “dupla consciência” do sociólogo norte-americano W.E.B. Du Bois, textos de Frantz Fanon, Aimé Césaire, Michel Foucault, Gilles Deleuze e André Lepecki. Dentre as referências utilizadas na pesquisa para a encenação estão Grada Kilomba, Antonio Obá, Mohau Modisakeng, Spike Lee, dentre outros.
Desfazenda, em seu estofo, carrega uma colagem de pesquisas (ou, para usar um termo do hip-hop, sampleamento). Se o assunto é bastante complexo e o discurso é potente e ácido, o spoken word faz com que a mensagem artística seja poética, incisiva e cirúrgica.
Diferentemente do que ocorre no documentário ‘Menino 23’, na peça-filme ‘Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar’ a identidade-mercadoria marcada pelos nomes-números das personagens ganha um caráter de soma e multiplicação. Mesmo sendo indivíduos, as personagens representam experiências coletivas devido à corporeidade negra comum a tantos jovens explorados justamente por serem negros. Além dos momentos de coro, esse aspecto também é explicitado em cenas em que vemos as silhuetas das personagens tão próximas que chegam a formar literalmente um só corpo-imagem preto, enquanto dizem, novamente em coro agora num formato de referência litúrgica católica, já que os jovens foram enclausurados por um Padre Branco: ‘assim há muitos membros, mas um só corpo’.
Trecho de crítica de Mariana Queen Nwabasili (Teatrojornal)
Os personagens e a relação com o corpo e a subjetividade negra
Na fazenda onde estão os personagens 12, 13, 23 e 40, há uma capela e um padre que, ainda que não apareça, se faz presente por meio da personagem Zero, portador das ordens, mandos e encaminhamentos desse padre. E é na capela que acontece o fato que muda a perspectiva de todos ali, ao se depararem com o processo de “re-verem-se”, tirarem os seus próprios véus e enxergarem o mundo (e a liberdade) de uma outra forma.
Enquanto buscam entender a situação na qual se encontram, em meio às memórias, as personagens apresentam problemáticas que costumam ser comuns no processo de entenderem-se como pessoas negras no Brasil: a assimilação do ideário do embranquecimento, a busca de autoestima e autoaceitação, a falsa promessa de um dia pertencer igualitariamente ao “mundo dos brancos”, a nascente pulsão de revolta contra conceitos estabelecidos e restrições impostas, além das questões imbricadas de gênero e raça.
Em seu segundo espetáculo, o primeiro adulto, O Bonde se propõe a investigar o processo de descobrir-se uma pessoa negra em um país que têm todas as suas relações eivadas pelo ideário escravocrata, pelas mazelas dessas relações e o que isso significa em históricos sociais e culturais. Surge assim um universo de memórias e revelações que trazem menos respostas do que provocam inquietações e questionamentos.
O ritmo e a poesia
Assim como Roberta, os integrantes d’O Bonde e demais atores envolvidos em todo este processo, a presença de Dani Nega trouxe ainda mais força à Desfazenda. A atriz, MC, compositora e ativista do movimento negro e LGBTQI+ – que vem se destacado no cenário artístico por sua mescla de suavidade, ironia e avidez – é diretora musical do espetáculo e criou todas as batidas, trilhas e paisagens sonoras, além de duas músicas compostas originalmente para a peça-filme.
Dani é uma das poucas mulheres no Brasil a atuar como “beatmaker” (ou seja, criar as próprias batidas, papel constantemente delegado aos homens). Em Desfazenda ela trouxe a potência e o ritmo do hip-hop para a cena, ajudando a criar a poesia do espetáculo e enfatizar o discurso.
Sinopse
Segunda montagem d’O Bonde e primeiro espetáculo adulto do coletivo teatral paulista, a peça-filme Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar concentra sua ação na história dos personagens 12, 13, 23 e 40, pessoas pretas que quando crianças foram salvas da guerra por um padre branco, e vivem numa fazenda, cuidando das tarefas diárias, supervisionadas por Zero. O padre nunca sai da capela, a guerra nunca atingiu a Fazenda, e sempre que os porquês são questionados, o sino soa e tudo volta a ser como antes (quase sempre). É a primeira direção da Roberta Estrela D’Alva fora do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e a direção musical é da atriz, compositora e DJ Dani Nega.
Ficha técnica
Direção: Roberta Estrela D’Alva
Dramaturgia: Lucas Moura
Elenco: Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves
Vozes Mãe e Criança: Grace Passô e Negra Rosa
Direção Musical: Dani Nega e Roberta Estrela D’alva
Produção Musical: Dani Nega
Músicas “Saci” e “Tocar o Gado”: Dani Nega e Lucas Moura
Sample “Menino 23”: Belisário Franca
Treinamento e Desenho de Spoken Word: Roberta Estrela D’Alva
Cenografia e Figurino: Ailton Barros
Desenvolvimento de figurino: Leonardo Carvalho
Desenho de Luz: Matheus Brant
Montagem de Luz: Alírio Assunção e Matheus Espessot
Operação de Luz: Alírio Assunção
Técnico de som: Hugo Bispo
Cenotecnia: Douglas Vendramini
Produção: Jack dos Santos – Corpo Rastreado
Realização: O Bonde
Serviço
Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar
De 05 a 15 de janeiro de 2023
De quinta a sábado, 20h e domingo, 18h
*haverá uma sessão no dia 11/01 (quarta-feira)
Sesc Avenida Paulista – Av. Paulista, 119 – Bela Vista, São Paulo – SP
Duração total: 70 minutos | Classificação Indicativa: 12 anos
Valores: R$ 30,00 (inteira), R$ 15,00 (meia-entrada) e R$ 9,00 (credencial plena)
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