Dada como perdida há cerca de 80 anos, Kuczynski encontrou a pintura na França há cerca de dois anos. “São momentos inesquecíveis na vida de um marchand — o prazer da descoberta. No entanto, neste caso, a emoção é de outra natureza e há pouca chance de que se repita na minha vida”, afirma. “No caso de ‘Viúva’, no entanto, existiu um salvador, e isso me intriga, faz minha imaginação voar. A pintura certamente magnetizou o olhar de alguém (um oficial nazista?), que por ela se encantou a ponto de, contra as ordens oficiais, escondê-la e poupá-la da fogueira — um delito grave naquele momento de extremos.”
Depois de algumas tratativas, Kuczynski conseguiu trazer a tela para o Brasil e apresentou-a ao Museu Lasar Segall, centro de referência para o estudo da obra do artista, onde foi analisada e autenticada pelo então diretor, Marcelo Monzani, e sua equipe técnica. Os ex-diretores do museu Marcelo Araújo, Jorge Schwartz e Giancarlo Hannud também foram convidados para ver a pintura pessoalmente, que até então só conheciam por fotos em preto e branco de antigos catálogos e livros. “Pude perceber, ao observar esses apaixonados por Segall, o frisson provocado pela fatura, pelo colorido e por toda a carga histórica da obra milagrosamente intacta”, concluiu.
“Viúva é uma testemunha da história, uma obra sobrevivente, profunda e intrigante que, reencontrada tantos anos após seu desaparecimento, mereceria voltar para casa, para o museu de onde foi confiscada [Folkwang Museum, em Essen]”, avalia Pierina Camargo, museóloga e pesquisadora do Museu Lasar Segall há mais de 40 anos.
Após análise dos especialistas e autenticidade confirmada, o público terá chance de encontrar a tela sobrevivente no museu dedicado ao artista, fundado dez anos após sua morte, em 1967, no lugar viveu com a família, na Vila Mariana.
“Witwe” ou “Viúva”, de Lasar Segall / Crédito: Alexandre Santos Silva
A história do quadro
“Viúva” (Witwe), de Lasar Segall, foi pintada em 1920, em Dresden, durante o auge da produção expressionista do artista. No mesmo ano, Segall inaugurou sua primeira grande exposição individual na Europa, no Folkwang Museum, em Essen, o principal museu de arte moderna da Alemanha na época. Além de “Viúva”, a mostra incluiu 30 desenhos, 35 gravuras e quinze pinturas.
No catálogo da exposição, o crítico e historiador de arte alemão Will Grohmann destacou Segall como um dos grandes artistas inovadores que migraram da Rússia para o país, juntamente com Wassily Kandinsky e Marc Chagall. Sobre a pintura “Viúva”, Grohmann escreveu: “O conceito em forma de afresco, uma premonição daquilo que poderia vir a ser um novo templo. Viúva, nobre majestade, é apenas uma proteção para os filhos que certamente vão se impor como a vida futura.” O quadro foi adquirido para integrar a coleção do museu alemão, porém, infelizmente, não permaneceu no acervo por muito tempo.
Em 1937, o governo de Adolf Hitler lançou uma campanha oficial contra o que considerava “arte degenerada”, rotulando assim todas as obras que não se encaixavam nos padrões clássicos de beleza e representação naturalista, que valorizavam a perfeição, harmonia e equilíbrio das figuras. Todas as obras desenvolvidas dentro das vanguardas modernas, como cubismo, expressionismo e fauvismo, eram consideradas “degeneradas” pelos nazistas. O governo confiscou cerca de 16 mil obras de arte, incluindo aproximadamente cinquenta de autoria de Lasar Segall.
Naquele mesmo ano, em julho, 650 dessas obras, confiscadas de 32 museus, incluindo duas pinturas de Segall, foram apresentadas na mostra “Entartete Kunst” [Arte Degenerada] em Munique. Apesar da desaprovação, infâmia e escárnio do povo alemão, a exposição foi um sucesso de público, recebendo mais de 2 milhões de visitantes e causando grande repercussão. Após a mostra, essas obras seriam destruídas pelo governo. Sabendo das cifras que alguns artistas alcançavam no mercado internacional, entretanto, os nazistas venderam trabalhos assinados por nomes como Picasso, Kandinsky, Chagall e Van Gogh, o que evitou sua destruição. A partir de 19 de maio, as pessoas também terão a oportunidade de encontrar no Museu Lasar Segall uma dessas raridades salvas da destruição nazista.
Sobre Lasar Segall
De origem judaica, Lasar Segall (1889-1957) nasceu na Lituânia e migrou para a Alemanha em 1906 para estudar na Escola de Artes Aplicadas e na Academia Imperial de Belas Artes em Berlim. Sua produção foi, inicialmente, marcada por referências impressionistas e pós-impressionistas. Traços mais ligados ao expressionismo, tendência à qual o artista é relacionado, começam aparecer em seu trabalho a partir de 1914. Após o impacto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Segall reflete em suas obras preocupações com injustiças sociais e sofrimento humano. Embora tenha visitado o Brasil em 1912, foi somente 10 anos depois que se mudou para o país, fixando residência em São Paulo em 1923. Segall tornou-se uma referência na cena artística da arte moderna brasileira, também dialogando com a produção de artistas nacionais como Tarsila do Amaral. Suas primeiras obras pintadas no Brasil mostram interesse pela luz e pelas cores tropicais.
Sobre o Museu Lasar Segall
Idealizado por Jenny Klabin Segall, viúva do artista, o museu foi criado pelos filhos Mauricio Segall e Oscar Klabin Segall em 1967. O acervo foi doado pela família à Associação Museu Lasar Segall que, em dezembro de 1984, se transformou no Museu Lasar Segall, hoje uma unidade do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia vinculada ao Ministério da Cultura.
Serviço:
Witwe, uma pintura reencontrada
De 19 de maio a 18 de agosto.
Museu Lasar Segall: Rua Berta, 111 – Vila Mariana.
De quarta a segunda das 11h às 19h.
Entrada gratuita.