Inspirado no teatro de Tadeusz Kantor e na linguagem de HQs e desenhos animados, o grupo Garagem 21 estreia Dias Felizes, de Samuel Beckett, no Teatro Cacilda Becker (Rua Tito, 295, Lapa, São Paulo, SP). A direção é de Cesar Ribeiro, com atuação de Lavínia Pannunzio e Helio Cicero, respectivamente, vencedores dos prêmios Shell e APCA; e Mambembe e Apetesp.
Uma das obras-primas do escritor irlandês ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1969, o texto traz a história de Winnie, uma mulher de 50 anos que dialoga de modo otimista sobre um passado glorioso e a esperança de dias melhores. Nessa condição precária, em um cenário desértico, ela se agarra às palavras e a seus últimos pertences para enfrentar a passagem do tempo e comandar seu universo de esperanças contraditórias com a realidade em que está inserida: além da imobilidade ao estar enterrada, a memória é falha, o sol é constante e seu marido permanece indiferente, ao fundo da cena, absorto na leitura de manchetes de velhos jornais.
Por meio dessa narrativa, a montagem aborda a desumanização, que condiciona grandes parcelas da população a uma cidadania de segunda classe: o isolamento, a escassez de recursos, a natureza hostil e a oposição entre os desejos de luta pela vida e desistência diante das adversidades configuram a obra como uma representação do abandono pelo Estado, pela coletividade e por qualquer suposta divindade organizadora. Mas como garantir a vida de milhões de pessoas vulneráveis socialmente sob uma realidade excludente?
“Estado e coletividade, duas forças que buscam agir de modo complementar para corrigir as distorções sociais, não são entidades apenas falhas em Dias Felizes, e sim ausentes: em um território devastado, em que o sol nunca se põe, nenhum ser humano é visto há tempos e apenas há vida nas formigas que atacam Winnie e na montanha que engole sua carne, resta a ela e seu marido, Willie, a companhia um do outro”, explica Cesar Ribeiro sobre a montagem.
Em cena, a relação entre os personagens também é de interdição e incompletude: mesmo em situação mais adversa do que seu companheiro, Winnie busca utilizar a linguagem como modo de enganar sua condição e seguir adiante. “Utilizando metateatro, é o estridente despertador que a acorda para o jogo cênico, como se fosse o terceiro sinal antes de iniciar um espetáculo; já o sol é representado pelos refletores, que iluminam a ação. E é nessa ação de ser vista e ouvida que compartilha a consciência de sua tragicomédia, buscando a palavra como modo de construção da única poesia possível, por conta dos impedimentos do corpo, e seu parceiro como um antagonista falho”, pontua o diretor.
A proposta de montagem segue a investigação dos sistemas de violência característica do grupo Garagem 21: se em Esperando Godot é investigada a violência estrutural e em O Arquiteto e o Imperador da Assíria o foco está na violência cultural, em Dias Felizes o centro está nas imposições relacionadas à construção do feminino e na violência do patriarcado.
“A voz que se ouve na peça é de Winnie, que o tempo inteiro retorna à expectativa de felicidade enquanto narra possibilidades de afeto perdidas no passado e a aridez do estado presente. Ao mesmo tempo, como um quebra-cabeça, o texto vai remontando uma relação afetiva que começa com a ‘conquista’ seguida por imediato silêncio entre o casal, resultado de um marido presente fisicamente, mas sem nenhum grau de escuta e que apenas grunhe palavras incompreensíveis e, às vezes, algumas frase soltas ou pequenas respostas”, afirma Ribeiro.
Como base teórica, a montagem utiliza obras como Eichmann em Jerusalém, em que Hannah Arendt propõe que o mal, ao atingir grupos sociais, é político e ocorre onde encontra espaço institucional, gerando a naturalização da violência como processo histórico e sociopolítico; e Calibã e a Bruxa, em que Silvia Federici investiga a opressão ao feminino a partir da chamada ‘caça às bruxas’ no período da transição para o capitalismo.
Esteticamente, a direção de arte busca a influência de princípios do cyberpunk e do steampunk, animações como Persépolis e Ghost in the Shell, visual da industrial dance e moda futurista para compor um território devastado, representado na cenografia de J. C. Serroni por um vulcão carbonizado, enquanto os figurinos de Telumi Hellen e o visagismo de Louise Helène apontam para o indivíduo-máquina característico de alguns animes e a luz ostensiva de Domingos Quintiliano destaca o impiedoso sol do deserto em que estão os personagens. Já a trilha sonora é composta de alguns efeitos e rock clássico.
Sobre o grupo Garagem 21
O grupo Garagem 21 surgiu em 2009, na cidade de São Paulo. Desde o princípio, centra suas pesquisas na investigação da ideia de poder e suas extensões no corpo social. Do ponto de vista estético, procura um híbrido do teatro com outras linguagens, como quadrinhos, videogames, desenhos animados e dança contemporânea, em busca de uma forma de fazer teatro relacionada à transformação social propiciada pelas novas tecnologias e capaz de fomentar um público contemporâneo e alheio ao teatro, além da continuidade do público usual.
Neste período, encenou as seguintes peças: O Arquiteto e o Imperador da Assíria (2021), Esperando Godot (2016), Cigarro Frio em Noites Mornas (2012), Fodorovska (2010), Somente os Uísques São Felizes (2009) e Sessenta Minutos para o Fim (2009) – O Arquiteto e o Imperador da Assíria foi selecionado no Prêmio Zé Renato de Produção do segundo semestre de 2019, no Prêmio Zé Renato de Circulação do primeiro semestre de 2022 e no edital ProAC de Circulação do mesmo ano. Esperando Godot foi indicado ao Prêmio Shell de Figurino e selecionado no Edital ProAC de Circulação de 2017.
Apresentou-se também em diversos festivais, como: Festival Nacional de Teatro de Ribeirão Preto (SP), Festival de Teatro de Curitiba (PR), Funalfa – Festival Nacional de Teatro de Juiz de Fora (MG), Floripa Teatro (SC), Festival de Teatro de Lages (SC), Festival de Teatro de Campo Mourão (PR), Festival de Teatro de Catanduva (SP), FestCamp (Campo Grande/MS), Festival Nacional de Teatro Pontos de Cultura (Floriano/PI), Mostra Jacareiense de Artes Cênicas (Jacareí/SP), Festival de Teatro da Unicentro (Guarapuava/PR), Festivale – Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraíba (São José dos Campos/SP) e Festival Nacional de Comédia (Alegre/ES). Apresentou-se ainda na primeira e na segunda edição da Festa do Teatro e na edição 2010 da Virada Cultural.
SINOPSE
Com Lavínia Pannunzio e Helio Cicero, a peça dirigida por Cesar Ribeiro é influenciada pela linguagem de HQs e desenhos animados e mostra a história de Winnie, mulher enterrada em um vulcão até a cintura que dialoga de modo otimista sobre um passado glorioso e a esperança de dias melhores enquanto tem ao fundo seu marido, absorto na leitura de velhos jornais.
FICHA TÉCNICA
Projeto contemplado no Prêmio Funarte de Estímulo ao Teatro 2022
Texto: Samuel Beckett
Direção e trilha sonora: Cesar Ribeiro
Atuação: Lavínia Pannunzio e Helio Cicero
Direção de produção: Edinho Rodrigues
Cenografia: J. C. Serroni
Desenho de luz: Domingos Quintiliano
Figurinos: Telumi Hellen
Visagismo: Louise Helène
Produção executiva: Vanessa Campanari
Fotos: Bob Sousa
Registro em vídeo: Nelson Kao
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Marcia Marques
Realização: Grupo Garagem 21, Mecenato Moderno Produção Cultural, Brancalyone Produções e Prêmio Funarte de Estímulo ao Teatro 2022
SERVIÇO
Até 30 de julho de 2023
Quintas a sábados às 21h e domingos às 19h
Local: Teatro Cacilda Becker (Rua Tito, 295. Lapa – São Paulo)
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)
Duração: 120 min. (incluindo um intervalo de 15 minutos)
Classificação: 12 anos | Gênero: Tragicomédia
Vendas: Sympla.com.br (https://www.sympla.com.br/produtor/diasfelizes) e bilheteria do teatro