por Ana Paula Yazbek*
Não são poucas as vezes que escutamos um adulto dizer “isso não é assunto de criança” e “você não deve se preocupar com isso”. Ou então, na correria do dia a dia, tentar desviar a atenção dela para outro tópico quando o diálogo parece desafiador. Por que isso acontece? O tempo da atenção e do cuidado não é o mesmo que se gasta para uma resistência ou situação de desgaste? Se todo ser humano precisa ser escutado e respeitado, por que seria diferente com as crianças?
Infelizmente, até décadas atrás, a criança sequer era considerada sujeito de direitos. Foram necessárias diversas movimentações políticas mundiais, lutas populares e pesquisas científicas para promover uma mudança de paradigma em relação à infância, compreendendo as particularidades desta etapa da vida.
Hoje, sabemos que a criança, por viver uma fase crucial para o desenvolvimento motor, cognitivo e psicossocial do desenvolvimento humano, precisa ser prioridade absoluta nas políticas públicas. Esse é um direito presente no Art. 227 da Constituição Federal que coloca a sociedade, a família e o Estado como corresponsáveis pelo cuidado das crianças. E, de fato, não há como colocarmos as crianças como prioridade sem escutá-las verdadeiramente.
Também sabemos que a neurociência já consegue provar a importância do vínculo afetivo para o desenvolvimento do cérebro humano durante essa fase da vida. Ou seja, quanto melhor as relações estabelecidas nesse período, melhor será para a aquisição de diversas habilidades. Não por acaso, esse direito está marcado no artigo 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas.
Cada vez mais, os estudos de ciências sociais, antropologia e sociologia têm destacado as crianças como protagonistas de suas próprias vidas, manifestando já na infância suas necessidades, interesses e habilidades. Alguns governos também têm aberto portas para considerar o que as crianças têm a dizer, a exemplo de Freiburg, na Alemanha, que ficou conhecida como cidade amigável às crianças por escutá-las em experiências de construção de políticas públicas.
Todas essas iniciativas são positivas para expor a necessidade da escuta, que, na realidade, é parte essencial das interlocuções e trocas constantes estabelecidas entre qualquer pessoa. Mas que não podem se tornar apenas experiências pontuais e isoladas no caso das crianças. Diante disso, é necessário pensar como estamos escutando as crianças no dia a dia. Mais do que isso, refletir, o que fazemos com aquilo que escutamos?
Como escutar as crianças
A antropóloga e educadora Adriana Friedmann, que há anos está a frente de pesquisas que utilizam a metodologia da escuta sensível de crianças, tem nos mostrado que ao escutar uma criança, não estamos o tempo todo fazendo perguntas a ela. E que é preciso estar atento às diversas possibilidades de comunicação.
Para algumas crianças, será por meio de um gesto específico, de um movimento, de uma expressão corporal. Para outras, será pela expressão musical, pela escrita ou por uma reação como choro, teimosias, birras e mesmo pelo silêncio. Seja como for, essa comunicação tem muito mais a nos dizer do que pensamos. Os conteúdos expressados por elas abrangem uma variedade de temas que as inquietam, traduzem emoções, sinalizam vontades, marcam vivências, frustrações e limitações, além de mostrar tendências individuais, seja para música, arte ou linguagem.
Mas para que essa escuta seja estabelecida é preciso baixar a ansiedade e valorizar os momentos de conexão com o presente. Precisamos oferecer um ambiente em que as crianças se sintam confortáveis para falar e ouvir. Precisamos estabelecer relações “não simétricas”, conseguir nos colocar no lugar da criança, “na mesma altura”, mergulhar nos seus universos, brincadeiras e na sua imaginação. Principalmente, ter paciência para exercitar gestos e falas gentis, que trazem possibilidade mais agregadora do que gestos ríspidos, apressados e impacientes.
Também é preciso compreender que temas como meio ambiente, diversidade, justiça, respeito, tecnologia, saúde mental, afetos e relacionamentos, dentro e fora da escola, também são assunto de criança. Isto é, qualquer assunto trazido no diálogo pela criança, passa, necessariamente, a ser um assunto de criança. Mesmo porque, o que elas estão querendo dizer não se trata apenas de dúvidas ou desejos, mas de temas e processos de desenvolvimento que podem ser integrados nos planejamentos e rotinas diárias.
Para compartilhar um pouco mais sobre esse processo, na prática: Adriana Friedmann coordenou recentemente uma pesquisa etnográfica no espaço ekoa, escola em São Paulo, onde 32 crianças de 6 a 12 anos participaram de um processo de observação e escuta sensível durante cinco visitas de campo. Entre os principais destaques da investigação, concluímos que o brincar, com tempo livre, está entre as reivindicações centrais das crianças.
A pesquisa incluiu múltiplos encontros, nos quais uma pesquisadora construiu, gradualmente, conexões com as crianças, observando seus interesses, conversas e preferências de brincadeira para formular propostas com base no que elas expressavam.
A dinâmica geralmente se dava da seguinte forma: Gláucia, a pesquisadora, se aproximava durante o tempo livre delas, durante o período de descanso, para encontrá-las e sugerir alguma atividade. Algumas crianças expressavam verbalmente algo como ‘é obrigatório participar?’ Ou ‘eu tenho que fazer isso?’. Elas já reconheciam o tempo livre como um espaço de escolha pessoal, conscientes de que podiam fazer o que desejassem durante esse momento. Assim, algumas delas ficavam chateadas com a presença do adulto, pois sentiam que estava interferindo nesse período. ‘Não, eu quero jogar’ ou ‘não, eu quero ensaiar’, eram respostas comuns, acompanhadas de questionamentos às educadoras que supervisionavam esse momento.
O que fazemos com aquilo que escutamos
Primeiro, é importante ressaltar que escutar não significa necessariamente que todas as vontades da criança poderão ser atendidas. É muito diferente de ser permissivo. Pelo contrário, muitas vezes, esse diálogo servirá para estabelecer limites. Mas essa escuta ajuda a mostrar à criança que estou acolhendo seu ponto de vista, validando suas emoções. Se eu respeito o que a criança está dizendo, ela também pode aprender a respeitar
Agora, em relação aos principais pontos que encontramos na pesquisa, a necessidade de brincar, com tempo livre, nos chama atenção. As crianças sinalizaram a importância de ter liberdade de escolha e como se sentem injustiçadas quando são interrompidas. E, como vimos, esse desejo nem sempre foi identificado por meio de uma afirmação elaborada em falas, mas em expressões de modo geral.
Segundo, é importante entender o que foi expresso. O brincar ajuda as crianças compreenderem o mundo ao redor, uma vez que as abastece de sensações e vivências que não são oportunizadas em situações controladas. Ao brincar, as crianças experimentam formas distintas de se relacionarem com os objetos, com as situações e com as pessoas. Elas passam a elaborar novas ideias, formulam perguntas sobre o que enfrentam e compreendem o que ocorre ao seu redor.
Um exemplo é a forma como as crianças organizam o espaço do brincar, com diversos objetos que permitem com que as crianças desenvolvam suas habilidades. Ao explorarem os objetos livremente, elas aprendem sobre suas características, como peso, textura e rigidez, e começam a classificá-los de acordo com critérios próprios. Esse processo de exploração e organização autônoma difere significativamente da abordagem em que os adultos impõem limites às ações das crianças, restringindo sua liberdade de interação com os objetos.
Por fim, o que foi sinalizado pelas crianças nos fez pensar sobre como organizamos a rotina diária na escola. Estamos considerando a necessidade do brincar como um direito fundamental? Acima de tudo, o fato da resistência das crianças ser direta e clara, não se intimidando ao defender o tempo de brincar, surpreendeu nossa equipe. Elas estavam claramente defendendo algo que sabiam ser seu.
Ainda não temos respostas às demandas das crianças. Nos questionamos se, de fato, o tempo dedicado ao brincar é restrito como elas sinalizaram. De todo modo, como escola, temos que nos comprometer tanto com as aprendizagens como com a integralidade das situações que ocorrem no cotidiano escolar. E no compartilhamento de espaços coletivos, um caminho possível é problematizar com as crianças e refletir genuinamente com elas formas de lidar com suas expectativas, sejam em momentos em que são atendidas ou quando são ou se sentem frustradas.
*Ana Paula Yazbek é mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em educação de crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades, e diretora do Espaço ekoa, em São Paulo